Em qualquer área de trabalho, um bom profissional procura atingir a excelência em seu ramo de atuação, não apenas para sua satisfação pessoal mas, também, para criar uma boa reputação na comunidade em que trabalha. Atingir a excelência é uma tarefa complicada, isto é inegável, mas talvez a parte mais difícil em todo este processo seja a capacidade de manter, por um período prolongado, esta mesma excelência e a reputação conquistada. Imagino que esta situação seja uma constante entre os profissionais do estúdio Bones, os quais, após o sucesso estrondoso de "Cowboy Bebop" (quando ainda eram membros da Sunrise), criaram uma pequena obra-prima chamada "RahXephon" e, de tabela, ganharam uma legião de fãs ardorosos em todo o mundo.
Gosto é uma coisa muito pessoal, mas é difícil imaginar que alguém coloque a obra seguinte do Bones, "Wolf's Rain", no mesmo patamar de "RahXephon". Mesmo com alguns bons momentos, "Wolf's Rain" é uma obra menor do Bones, e nem mesmo a presença de Keiko Nobumoto (Bebop) por trás do roteiro conseguiu melhorar muito a qualidade da história. E isto nos leva de volta à questão da reputação e da excelência: seria o próximo anime do estúdio Bones, "Scrapped Princess", capaz de recolocá-los no topo?
Suspense, hehehe! Como meu espírito está um bocado sádico hoje, deixarei todos os leitores em expectativa até o finalzinho do texto. Enquanto isto, vamos à história. Pacifica Casull é uma princesa de 15 anos que viaja com seus dois guardiões, Shannon e Raquel, os quais também vêm a ser seus irmãos. Pode-se imaginar que uma viagem bucólica ao lado dos amados irmãos seja motivo de festa, mas o caso aqui é bem diferente. Pacifica está constantemente em fuga e precisa ser protegida por seus irmãos 24 horas por dia, em função de uma profecia, segundo a qual Pacifica não é nada mais do que um veneno letal cuja simples existência é considerada um pecado, e está fadada a destruir o mundo ao completar 16 anos. Por esta razão, a profecia se refere a ela como "Scrapped Princess", algo como "Princesa Descartável", um mal que deve ser erradicado do mundo antes que atinja a idade citada pois, do contrário, a humanidade será completamente exterminada.
Apesar de ser uma princesa de fato, Pacifica não conheceu os próprios pais (por razões que são explicadas ao longo do anime) e nem teve a chance de desfrutar da vida luxuosa da realeza. Desde criança, ela viveu com pais e irmãos adotivos e foi cercada de muito amor e companheirismo dentro de sua nova família. Mas havia um preço a pagar: à exceção dos irmãos adotivos Shannon e Raquel, Pacifica não possui amigos e não pode se relacionar com outras pessoas, já que até mesmo parentes trairiam a confiança e não pensariam duas vezes em matá-la, se tivessem a oportunidade para tal.
Ao longo da jornada de Pacifica, Shannon e Raquel, vamos conhecendo toda a história por trás desta sombria profecia e entendendo melhor o porquê de todo o mundo desejar a morte da princesa com todo o entusiasmo. E, como sempre, várias perguntas vão pipocando na cabeça do espectador: seria a profecia realmente verdadeira? Neste caso, como ficaria a questão do livre arbítrio de cada pessoa, uma vez que o futuro de cada um já estaria planejado? Se Pacifica já estava automaticamente condenada à morte, por que nasceu? E qual seria este poder maligno prestes a se desenvolver em Pacifica, capaz de destruir o planeta?
Li um comentário a respeito de "Scrapped Princess" em que o autor do texto comentava sobre o fabuloso ambiente criado neste anime, talvez o melhor universo de fantasia desde os jogos da série Final Fantasy. Não sei se chega a tanto mas, pelo menos no campo dos animes, contam-se nos dedos as obras que conseguiram uma ambientação tão envolvente e mágica, talvez apenas a série de OVAs de "Record of Lodoss War" tenha atingido um nível semelhante. Como sempre, a capacidade dos artistas do Bones em utilizar a computação gráfica de forma magnífica é de se admirar. Ao contrário de alguns animes do estúdio Gonzo, em que o uso de efeitos de CGI podem ser claramente notados em algumas seqüências, as obras do Bones sempre possuem uma integração perfeita entre cenários, personagens e objetos. As batalhas finais, em especial, são um primor em termos visuais e de tensão dramática. Tecnicamente, "Scrapped Princess" é impecável.
Felizmente, "Scrapped Princess" não se baseia apenas no visual para sobreviver. Os personagens em geral são bem consistentes, evitando cair nas armadilhas de "extrema bondade" e "assustadora maldade". Pacifica às vezes se comporta como uma menina mimada mas, no geral, é uma bem humorada adolescente que sofre com a situação em que se encontra, sem entender a razão pela qual carrega este imenso fardo. Shannon, seu irmão mais velho, é praticamente imbatível no combate com armas, e daria a sua vida para proteger a irmã, mesmo tendo dúvidas, lá no fundinho da alma, sobre a veracidade ou não da profecia. Raquel, sua irmã, possui poderes mágicos simplesmente impressionantes. Como é um pouco atrapalhada, muitas vezes acaba exagerando na hora de utilizar suas magias, causando uma certa "destruiçãozinha" ao seu redor. E temos ainda a enigmática Zephiriss, uma espécie de anjo protetor com a impassividade de Rei Ayanami e a sabedoria de Yoda que tinha tudo para ser chatíssima, mas acabou se tornando uma personagem cativante e de importância fundamental na trama.
O "Lado Negro da Força" também possui excelentes personagens, como Christopher Armalyte, ou simplesmente Chris, cavaleiro da unidade "Obstinator Arrow" e encarregado de exterminar Pacifica. Desde o início podemos perceber que há muita coisa mal-resolvida em termos psicológicos na cabeça de Chris, o que gera interessantes conflitos entre o que precisa e o que gostaria de fazer. Mesmo os "Peacemakers", fortíssimas entidades encarregadas de exterminar Pacifica, custe o que custar, não são sacanas nem nada, mas agem de acordo com a verdade em que acreditam.
O enredo toca no velho problema do sofrimento e do embotamento mental causados pelo fanatismo religioso, deixando perguntas no ar que podem até mesmo soar heréticas para algumas pessoas. Deus realmente sabe tudo? Não erra de forma alguma? E seria ele realmente imortal? Ao assistirem a "Scrapped Princess", é provável que muitos de vocês também tenham dúvidas semelhantes.
Outro fator que ajuda a manter o interesse na narrativa é a excelente mistura de humor, ação e drama. Não há uma abundância de "gags" visuais "à la Love Hina" mas, sim, situações tão inusitadas e expressões faciais tão idiotas (especialmente por parte de Shannon) que é impossível segurar as gargalhadas. Neste aspecto, um ponto negativo diz respeito ao personagem Leopold Scorpse, apaixonado por Pacifica e muito engraçado, mas que atua praticamente como um palhaço em cena. Não vou negar que ri muito com algumas situações, mas o potencial dramático deste personagem foi muito desperdiçado, principalmente levando-se em conta que ele não é nada secundário em termos de relevância no enredo.
"Ah, mas então Scrapped Princess é uma obra-prima, no nível de RahXephon?". Não, não é. Apesar de ter muito mais acertos do que erros, "Scrapped Princess" escorrega em pontos semelhantes aos que tiraram parte do encanto de Wolf's Rain. Primeiro, pela presença de vários episódios "enchedores de lingüiça" no meio da trama. Nem de longe se comparam ao infames "recaps" de Wolf's Rain, mas são suficientemente monótonos para prejudicar o interesse na história. Além disto, voltam os famigerados clichês e as coincidências inacreditáveis. Pessoal, eu sei que clichês e coincidências são parte obrigatória em alguns estilos de obras audiovisuais. A existência deles não seria um problema sério, não fosse a quantidade excessiva e os momentos em que aparecem. Isto é particularmente percebido entre os episódios 15 e 20, nos quais o abuso de coincidências e dramalhões chegam a dar desespero.
Mesmo sem atingir o patamar de "RahXephon", "Scrapped Princess" é uma excelente obra que eleva novamente o prestígio do estúdio Bones. No momento em que escrevi estas linhas, ainda não havia assistido a "Full Metal Alchemist" nem "Kurau: Phantom Memory", os quais, de acordo com comentários que li e ouvi, são verdadeiras obras-primas. A julgar pelo potencial demonstrado em "Scrapped Princess", não duvido que isto seja verdade. É o Bones voltando à velha forma... amém!
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